domingo, 5 de junho de 2011

" A riqueza não olha a miséria, mas a miséria olha a riqueza. A miséria nos lembra que a desgraça existe e, portanto a morte também "
  


Outro dia, atravessei dois eventos das ruas brasileiras : a piedade e o medo.Um carro escostou a meu lado e o motorista me apontou gentilmente o pneu de trás, que estaria furado.Se eu saltasse,estaria sob um revólver,percebir e me arranquei. Depois do terror, a pena.Mais adiante, uma mendiga me enviou seu filho magrelo e sujo em busca de esmola.

Eu preferia que ele não tivesse vindo.Se ao menos ele estivesse sozinho,seria suportável. Dei uma esmola de "mercado", sem olhar para o menino que, no entanto me olhava sem parar.A mãe também me olhava de longe.Por que essa divergência de olhares? A riqueza não olha miséria, mas a mizeria olha a  riqueza.Não olho para não sentir culpa.A miséria não é a plástica.A miséria nos lembra que a desgraça existe e,portanto,a morte também.

Assim que dou o dinheiro ao menino, so tomado por um ódio súbito contra o estado das coisas,um tremor meio histérico contra a sitação brasileira,contra os políticos.Aos poucos me acalmo e saio lucrando com a esmola,pois cumprir meu dever e me sinto legal, pois paguei meu pedágio aos pobres por ter carro,comida e casa.A caridade me faz mais bem do que ao garoto.A miséria mantém o mundo funcionando,apesar de sujar a paisagem.

Depois disso, ainda traumatizado pelo medo do quase assalto,imagino o contrário : e se um cara maior, forte e bruto me metesse um revólver na cara, pela janela? Primeiro, o assalto inverteria a posição do caridoso sujeito que me considero, e passaria a ser a vítima e não mais o esmoler.A pobre pessoa seria eu e teria de soltar a grana para não morrer.No assalto você é a vítima e o culpado.Pior ainda se você for amante dos "pobres e oprimidos",um comunista talvez.Nada pior que um comunista assaltado....

No assalto,se inicia um processo de incriminação em que você é a peça de um complexo micro-macro de injustiças que se inicia no capitalismo de Wall Street e acaba ali no teu relógio que ele arrancou.Retraçando o mapa, descobre-se que o teu Rolex foi comprado com o dinheiro que teu pai deixou,herança da fazenda que teu avô pagou com dinheiro público em nome de um "laranja" e depois vendeu com preço subdeclarado;isso te inclui numa estirpe de malandros culpados pela desigualdade social.

Não há remissão no assalto.Além de te levar a grana,a culpa é tua.Com o fim da caridade todos ficam suspeitos,todos incluídos no crime.Ficam visíveis relações finíssimas : no esgar da cara de um burguês nordestido, se vê a seca desenhada como uma tatuagem;na barriga de um político ou um bigode pintado se percebem anos de corrupção e crueldade. E através dos olhos furiosos dos marginais, passamos a ver a cara real do Brasil hoje.

Mas, a miséria armada nos faz esquecer a miséria indefesa.Com a onda de violência, estamos percebendo a compaixão pelo pobres.E como ninguém sabe resolver o drama da miséria, criamos um vago rancor contra ela, um certo tédio, porque ela não some, teima em reaparecer.No Brasil, miséria é uma indústria. Quanto lucro uma igreja de charlatães com o dízimo? Lamentar a miséria traz votos populistas.

Nos sonhos "revolcionários" dos pequenos burgueses, a miséria era uma bandeira.Sofriamos com ela;a miséria dos outros era nosso problema "existencial". Hoje, esvaiu- se a "revolução" imaginária; isso gerou um desalento que aos poucos deu lugar ao cinismo, quase um alivio feliz. Mas, a miséria é a ponta de um iceberg sujo e poluído no Brasil. Nós fazemos parte dela.Não existe um mundo limpo e outro sujo.Um infecciona o outro.A burocracia é miséria, nossa corrupção é miséria, a estupidez política é miséria.

A miséria não está nas periferias e favelas,está no centro da vida brasileira.Somos uns misériaveis cercados de miséraveis por todos os lados .